“Rio
Grande nunca vai mudar mesmo que mude. E pode mudar em toda e qualquer
esfera a qual se possa imaginar. Pode acontecer o armagedom, a nova era
glacial, que chegou a ser anunciada essa semana, ou quem sabe, um novo
surto de peste que dizime 1/3 de sua população. Mesmo assim, Rio Grande
permanecerá estática, imóvel como sempre esteve. A solução possível
estaria, quem sabe, numa colonização intergalática. Talvez alienígenas
poderiam modificar as coisas por aqui. Mesmo assim, continuo acreditando
no potencial do povo riograndino. Enquanto existir o último resquício
de vida papareia, nosso espírito será conservado”.
A recente matéria publicada aqui
no site sobre o turismo em Rio Grande é o reflexo de uma cidade imóvel,
que mesmo após as mudanças do paço, continua tratando velhos assuntos e
questões como sempre foram tratadas, ou seja, na base do coleguismo, do
cabide de emprego, do despreparo profissional e da eterna confusão
entre o público e privado.
Pensar
hoje a cidade de Rio Grande, como elemento histórico social dentro dos
mais diversos desdobramentos e fragmentações que isso possa ter, é
justamente se transportar para outros momentos históricos. Nós
historiadores adoramos fazer esse exercício dialético de
passado/presente, presente/futuro. É uma ferramenta de trabalho. Vivemos
tentando encontrar semelhanças, erros e acertos, no que já passou para
não incorrer, no presente/futuro, no mais do mesmo.
As
coisas funcionam assim e não sou eu que estou dizendo. Centenas de
intelectuais já se debruçaram e escreveram teses sobre essa relação de
definitiva existência do historiador com o tempo. Alguns deles
escreveram para definir nossa real função e fazer a diferenciação entre
historiador e futurólogo. Não somos, não temos esse poder. Particularmente, eu acharia bem legal.
Para
aqueles que, assim como eu, gostam de observar atentamente a realidade,
o momento nunca foi tão instigante. Grandes investimentos no setor
industrial, comércio aquecido, elevados custos na habitação, milhares de
migrantes, trânsito beirando o caos, aumento da pobreza e da violência,
invasões de terrenos, lixo sendo descartado em locais públicos, além, é
claro, da nova gestão administrativa no governo da cidade.
Citei
apenas esses exemplos e poderia aqui elencar muito outros, mas acredito
que são suficientes para nossa problematização. Estamos falando de Rio
Grande, a primeira cidade do Estado do Rio Grande do Sul, aquela que foi
pioneira em diversas coisas. Primeira indústria têxtil, primeiro clube
de futebol, primeiro balneário, primeira biblioteca...
Ao
longo dos anos, Rio Grande cresceu em meio ao seu caráter cosmopolita
sem saber qual era o significado dessa palavra, abrigando e recebendo
estrangeiros das mais variadas nacionalidades, etnias, estados do Brasil
e cidades do Rio Grande do Sul. Por conta de nossa posição estratégica
favorável, possuímos um dos maiores portos do país e, disso, surge um de
nossos principais enigmas.
Cidades
cosmopolitas convivem, diariamente, com a diversidade. Esses lugares
aprendem a viver com o distinto, explorando, abrigando e colhendo dessas
relações sociais construídas no cotidiano, o que elas podem fornecer de
melhor: a pluralidade cultural e o reconhecimento do outro.
Rio
Grande talvez seja uma das raras exceções onde tudo deu e continua
dando errado. O pluralismo cultural só funciona na Feira de Artesanato
local, em que as etnias são apresentadas como heranças culturais
válidas, onde o árabe pode andar de burca ou taqiyah sem ser atravessado
por um olhar seguido de um comentário que tenta o ridicularizar em
pleno centro comercial no século XXI. Onde os africanos podem cultivar e
mostrar suas raízes sem serem taxados de “bando de macumbeiros”.
O
mesmo pluralismo cultural da feira, que reconhece as etnias,
desconsidera a grande massa de trabalhadores pobres migrantes da região
falida da campanha gaúcha, que foram os alicerces, braços, pernas e
cérebros da cidade industrial mais importante do Estado do Rio Grande do
Sul, nas primeiras décadas do século XX.
Em
nossas raízes, somos o resultado dessa mistura de povos e regiões,
imigrantes e migrantes. Portugueses, ingleses, espanhóis, italianos,
poloneses, uruguaios, africanos, palestinos, sírios, libaneses, judeus,
católicos, muçulmanos, umbandistas e adoradores do diabo. Além disso,
somos ainda gaúchos e brasileiros. Rio Grande é sim, muito de toda essa
mistura, mesmo que fatos como a imigração e migração nessas terras
papareias tenham, muitas vezes, passado batido por trabalhos acadêmicos.
A mentalidade riograndina não permite inovação, é quase como heresia, predestinação divina ou seria castigo?
Algo
do tipo: vocês nunca terão o protagonismo, seu papel se resume àquela
personagem carismática que inicia alguma saga, ganha a simpatia do
público e morre no meio da trama, passando o posto de mocinho/herói, ao
colega de roteiro, a moça do lado.
Neste
caso a moça do lado se chama Pelotas, uma cidade surgida duas décadas
depois (1758), mas que vem pra roubar a cena com a sua beleza e
inteligência de princesa e, assim que possível, transformar-se na
personagem principal da região Sul. Historicamente, a cidade vizinha
valorizou seus costumes locais, soube trabalhar muito bem com a
diversidade cultural, explorou suas condições geográficas, abrigou
colônias de imigrantes nas serras ao seu redor, deu valor a produção
artística local, embelezou suas ruas e organizou um moderno traçado
urbano em formato de tabuleiro de xadrez.
Assim
Pelotas cresceu, centralizando na cidade toda a produção agrícola das
colônias, explorando o comércio e a cultura local, importando refinados
comportamentos, ganhou expressão nacional na produção de doces. O
passado em Pelotas é visitado através da memória que não se cansa de
recordar. A memória faz questão de aparecer, de ser mostrada através das
fachadas de seus casarões e prédios históricos, reproduzidos até mesmo
dentro de sua principal feira, a Fenadoce.
Fatos
simples como esse, demonstram o quanto a política de valorização do
patrimônio artístico cultural local é importante para a própria
manutenção da economia urbana. Ou seja, Pelotas se projeta e se vende
muito bem como cidade histórica.
Lembrando
que os pelotenses, atualmente, ocupam a 8° posição no ranking do PIB do
estado do Rio Grande do Sul, enquanto Rio Grande está no 4º lugar.
Basicamente, a economia da cidade vizinha está apoiada no forte comércio
local e em algumas pequenas indústrias de beneficiamento de alimentos.
Além disso, conta com o forte apelo de ser uma cidade universitária.
Cabe
aqui lembrar que Pelotas conseguiu transformar um pedaço de lagoa em
praia, com direito a orla, pista de caminhada, trapiche, centro
comercial, quiosques e estacionamento a poucos metros da água. Com um
pequeno porto fluvial, impôs-se geoeconomicamente e ergueu grandes
indústrias alimentícias, importantes para o desenvolvimento da cidade e
da região sul na primeira metade do no século passado.
Texto publicado no site tucotuco em: 19/01/2014