quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Memórias de Chico



03h: 45min da madrugada de quarta para quinta feira, redação do blog O que vejo. O setorista de plantão foi até a janela do oitavo andar de nosso prédio, para dar a sua costumeira fumada, quando encontrou uma carta colocada junto às persianas. Esta carta apresentava alguns sinais evidentes de que fora entregue por algum meio não convencional.

Reproduzimos na íntegra o material. 



Olá humanos, como estão?

Primeiramente, peço para que não me confundam com um outro Chico que anda por aí querendo o meu fim.

Fiquei sabendo, por meio de alguns amigos em comum, que os vermelhos pretendem nos tirar do nosso lugar histórico e nos enviar para não sei onde, um tal de centro de reabilitação.

Olha só! Vejam só! Se não é o fim dos tempos. Nós, que estamos aqui há muito tempo, que vimos através dos buracos das telas, gerações e gerações de famílias inteiras se divertirem e se inspirarem em nosso comportamento divertido. Um jeito sutil de ser, de levar a vida, como se ela fosse uma eterna brincadeira.

E agora que existe essa proposta de acabar com o nosso lar, de findar as tardes de domingo regadas a pipocas, amendoins, bananas e baganas de cigarros? Sei que sou um velho viciado, mas fui mimado por vocês; o meu corpo não suporta mais ficar o dia inteiro pulando de galho em galho, se bem que galhos dentro desta casa... É... deixa pra lá é até melhor.

Ao longo destes anos estabelecemos muitos laços de amizade com o pessoal da praça. A galera do laguinho é meio barulhenta, festeira, mas é gente boa. Hoje a família deles está um pouco reduzida, não sei por que motivo, mas por falar em família, o pessoal aqui do lado é especialista neste assunto. Apesar de manter uma produção em escala industrial, não nos incomodam em nada, vivem na deles, cavando enormes buracos, procriando e vez por outra nos fazem uma visitinha presenteando-nos com alguma cenoura.

Mais adiante, por este mesmo lado da rua, fica o outro pessoal do lago. Vivem de boa, parecem seguir o ritmo da vida de muitos senhores e senhoras, que saem logo cedo de suas casas para apanhar sol ou jogar dama pelos bancos da praça. Esses dias, conversando com Solange, a síndica do condomínio do Lago da Beneficência, ela me reclamava de um descontentamento com relação ao cardápio. Dizia ela: “Chega! Não aguentamos mais comer pipocas e ser enganadas por cusparadas! Além disso, vez por outra, algum humano abrevia o caminho do banheiro e resolve urinar em nossos cascos.”

Mas depois dessa conversa fiquei a pensar no que a Solange disse, eles estão há muito mais tempo do que eu por aqui. Vivem uma vida pacata, acho que ela está é reclamando de barriga cheia!

Por falar em vida pacata, o vizinho aqui da frente talvez seja o maior exemplo disso. Desde que a sua esposa se foi, ele não falou mais com ninguém, vive em completo estado de isolamento, volta e meia, dá uns gritos desesperados e novamente se refugia em sua solidão. Nem mesmo os atentos olhares de crianças, flashs de máquinas fotográficas e pipocas, são capazes de trazê-lo de volta, de relembrar, nem que por um instante, o seu tempo de atração secundária do minizoo. Digo secundária, porque nunca nenhuma espécie esteve acima de nós. (risos).

Ele se tornou rabugento demais. Um sujeito praticamente insuportável que reclama de frio, de calor, da falta de alimentos, da falta de higiene em sua casa e até do tamanho de sua humilde residência. Veja só que sujeito chato! Pobre Augustos, eu tenho pena dele (como sou irônico).

Saudades de Gabriela, aquela anta era capaz de amenizar qualquer situação. Quando havia algum tipo de desconforto aqui na praça, nós repassávamos para ela e, prontamente, era resolvido. Era uma espécie rara, daquelas que você podia contar para toda e qualquer hora. Tinha livre acesso a todos os setores de nossa sociedade, sua diplomacia era capaz de fazer qualquer estudante do Instituto Rio Branco se sentir envergonhado.

Causa-me espanto saber que muitos de vocês não nos querem mais, que passou o nosso tempo. Mas vejam bem, se não são justamente vocês que nos procuravam para observar o nosso comportamento e o nosso jeito de ser.

Eu fiquei sabendo que alguns humanos até buscam viver como nós, enjaulados, recebendo comida, bebida e cigarros por meio das grades, tendo horários para o banho de sol.

Também fiquei sabendo que vocês até criaram um programa de televisão, que é um sucesso de audiência, onde a grande atração é enjaular humanos dentro de uma casa e deixar aflorar os seus instintos mais selvagens. Confesso que quando soube disso fiquei empolgado, feliz, emocionado e não pude conter o meu pranto.

Afinal de contas, somos nós mais uma vez ensinando que a vida humana nada mais é que um imenso zoológico com rígidas regras de convívio social e que, bem lá no fundo, todos vocês gostariam de ser um pouco mais livres. 


E agora, quem me levará cigarros na clínica de reabilitação?!

Ass: Chico, o símio fumante da Praça Tamandaré.


4 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Parabéns pelo post Ticiano. Bastante criativo.
    Concordo e discordo do teu texto. Manter os animais da maneira que estão não é legal. Porém, este é sim um simbolo da cidade. Se a ideia é remodelar o espaço acho válida, mas se é para deixar como esta...

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  3. muito bom o texto. na verdade a questão trata do rompimento de ligações antigas, tanto que nem sabemos quanto, paradigmas pré estabelecidos sobre o significado de "humano" e "animal". queremos os animais nas florestas e queremos derrubar as florestas pra plantar grãos que irão alimentar os humanos e os animais. tirar os animais das jaulas é condená-los à morte certa, por inanição, por violência, etc. acho que o melhor seria deixá-los onde estão, melhorar as condições de vida, propiciar melhores cuidados, não deixar aumentar a população e esperar que o tempo se encarregue de estabelecer o fim da fauna cativa, exceto no caso dos coelhos, pois este são como as pragas vermelhas, não param de se reproduzir.

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  4. Parabéns Ticiano, mas minha opinião diverge da tua, ainda bem imagina se todos pensassem da mesma forma.

    Sou a favor da retirada dos animais, assim como sou a favor da retirada dos onibus, dos camelos, dos vendedores de meia e controle de TV. A praça não é para isso, deve ser melhor aproveitada.

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